Uma não crônica policial

Esta crônica será sobre algo que nunca presenciei enquanto autoridade policial – ou, se vi, foi coisa bem rara, já que eu nem me lembro. Em outras palavras, escreverei sobre um “não caso” de delegacia. Furto de livros.

Sim, furto de livros. Já vi surrupiarem de tudo: roupas, transformadores de energia, tijolos, perfumes, documentos, talheres e até coisas personalíssimas como óculos de grau. Livros, nem pensar. Não é para menos: poucos os têm e ainda menos gente os lê.

Como seria se o afanar dessas obras fosse corriqueiro? Imagino os seguintes quadros:

Cena 1: Distrito policial. Um agente da equipe de captura entra esbaforido na sala do delegado e fala o apelido de um conhecido ladrão:

“Macunaíma voltou a agir, chefe.”

“Pelo amor de Deus! Como vocês sabem que é ele? O desgraçado pichou de novo #aiquepreguiça! na parede da casa da vítima?”

“Desta vez, não. Mas é que levaram três obras literárias de uma residência ontem à noite. Um Mário, um Oswald e um Graça Aranha. Só gente ligada à Semana de 22.”

“Ai! Que saco!” exclama o delegado.

Cena 2: Fórum. O juiz interroga o réu, um homem de meia-idade que usa desses itens personalíssimos de grossas lentes.

“Vi aqui na sua ficha que foi a segunda vez que o senhor furtou A Montanha Mágica. Tem algo a dizer sobre seu comportamento reincidente?”

“Sei que errei, doutor, mas, acredite, não se trata de reincidência. Meu caso é de inexigibilidade de conduta diversa. O próprio Thomas Mann, meritíssimo, recomendou que seus leitores, depois de algum tempo, lessem de novo o calhamaço, pois assim a experiência literária seria mais rica.”

O magistrado olha de soslaio para o escrivão, contumaz devorador de livros e fã do escritor (tanto que cria um cachorrinho tuberculoso que atende pelo nome de Hans Castorp e um papagaio chamado Doutor Fausto, que se agita no poleiro ao som de piano). O servidor confirma, com um gesto de cabeça, que o réu falou a verdade.

Outras cenas eu deixo à imaginação do leitor.

Não digo que ficaria feliz se furto de livros fosse algo frequente, pois a um delegado não são permitidas certas leviandades. Mas quero crer que a polícia, com o tempo, teria menos trabalho se as pessoas começassem a surrupiá-los.

* Ataíde Menezes Júnior

Delegado de Polícia

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