
Naquele município havia um emprego, digamos assim, do outro mundo: ser um funcionário fantasma no Arquivo Morto, verdadeiro depósito de apaniguados políticos que recebiam sem trabalhar. Eram tantas assombrações lotadas ali que a repartição mais parecia Comala, a vila de Pedro Páramo. No dia da inauguração do prédio, em pleno feriado de dois de novembro, cogitaram um padre para abençoar as instalações, mas levaram um médium, que aspergiu ectoplasma de sala em sala. Ele também teve de psicografar o discurso de posse do diretor, pois a autoridade preferiu faltar à cerimônia a interromper uma excursão pelos Lençóis Maranhenses (sim, prezados leitores, o diretor escolheu o destino turístico quando viu a palavra lençóis).
O servidor mais antigo, Gaspar Júnior, estava – ou melhor, não estava – no órgão havia oito anos, desde o início do primeiro mandato do atual prefeito. Responsável pela Subcarimbadoria Interina, chefiava uma dúzia de espíritos. Experiente, costumava dizer aos colegas de não trabalho que o fantasma do serviço público, justamente em razão das vantagens da sinecura além-túmulo, está sempre em evidência no coração do invejoso e, portanto, não desfruta da tranquilidade verdadeira, duradoura. De vez em quando, Gaspar citava Nelson Rodrigues: O morto esquecido é o único que descansa em paz.
O decano estava certo.
Chegada a época de nova eleição, as assombrações do Arquivo viraram tema da campanha oposicionista, e a discussão extrapolou os limites do município. Bem longe dali, um famoso caçador de entidades sobrenaturais tomou conhecimento do caso, apelidado pela imprensa de Incidente em Antares. Esse caçador era um profissional tão bom que até ghostwriter tinha medo dele. Expulsou fantasma do desemprego, da inflação, da solidão, de rebaixamento de time de futebol. Colocou para correr o Fantasma da Ópera, o de Canterville e tantos outros da literatura. Paranormal precoce e criança superdotada, leu Shakespeare aos cinco anos e aprisionou o espírito de Hamlet numa casca de noz. Mas alma penada da burocracia, ah!, isso ele nunca havia enfrentado. Assim, entregou-se ao desafio.
Chegou à pequena cidade e foi direto ao Arquivo Morto. Na recepção vazia, um hálito de sepulcro o atingiu. Meu Deus, que cheiro péssimo!, exclamou. Então uma voz atrás dele disse: Queira nos perdoar, cavalheiro. Infelizmente, a faxineira também é servidora fantasma. Era um sujeito grisalho, tão magro que parecia um esqueleto: o copeiro, um dos poucos seres que, em benefício das aparências, cumpriam expediente. Os outros, incluindo os estagiários, não chegavam a uma dezena e, ansiosos por uma promoção post mortem, passavam o tempo às voltas com um tabuleiro ouija.
Copeiro de repartição pública – fantasmagórica ou não – é quem mais conhece as entranhas do poder. Ele é uma paradoxal evanescência de carne e osso que circula por gabinetes e corredores com café, água mineral e outros agrados que caibam no orçamento. Também vagueia livremente por reuniões, congressos, seminários. Enquanto serve o café, a água, os biscoitos, finge-se desatento; os outros ao redor, por sua vez, falam sem o menor desassossego na presença daquele sujeito que consideram irrelevante. Ele escuta um pecado aqui, outro acolá, e anota num diário – O Grande Livro do Homem do Cafezinho – não só as mazelas do espírito mas também as da matéria (fulano é invejoso, beltrano é corrupto, sicrano tem intolerância a lactose…). O copeiro é, muitas vezes, um padre involuntário que ouve confissões de quem não quer se redimir. Como eu disse, ele conhece como ninguém os bastidores do poder – e entende que algumas coisas jamais mudam.
Sei bem por que o senhor veio, falou ele. E continuou: Desista. Entra prefeito, sai prefeito, tudo fica na mesma. Exoneram uma frota de barcos de Caronte e depois nomeiam outra leva de apadrinhados. No final das contas, vão-se os fantasmas e, excetuando-se os de seda e de algodão egípcio que somem nas transições de governo, ficam os lençóis. A política sempre terá um quê de sobrenatural, de fantasmagoria.
Fez uma pausa, como se estudasse a reação do homem, e prosseguiu: Além disso, o senhor não vai capturar assombração nenhuma nesses corredores e salas, pois servidor fantasma, por definição, aparece em qualquer canto, menos no local de trabalho. Falando em trabalho, aceita um cafezinho?
O paranormal ficou calado, talvez cogitando a primeira, única e tardia derrota em sua carreira. Mas ainda não queria se dar por vencido e perguntou: Sério!? Os servidores fantasmas nunca aparecem por aqui?
Raramente, explicou o outro. Quando precisam assinar o requerimento das férias, por exemplo.
O caçador, tomado pela resignação, apenas disse: Aceito o café. Amargo, por gentileza. Amaríssimo.
- Ataide Menezes Júnior (Delegado de Polícia em Sergipe)
Crônica que ficou entre as cinco finalistas no Prata da Casa, da Casa Brasileira de Livros. Mais de 1600 crônicas concorreram.