Rosa renascida

Por Ataíde Menezes

Preciso lhe dizer, mãe, que desejei com todas as minhas forças a sua morte. Isso foi na sexta-feira. Cheguei a esse ponto inimaginável quando recebi no celular uma foto sua que minha irmã me mandou do hospital. Seu rosto, que para mim sempre foi um espelho de serenidade, era, então, uma rosa pisoteada pelo martírio de cinco meses do qual fui espectador impotente.

Cinco meses! Queda, fratura de fêmur, internações, dores, infecções, problemas renais, hipertensão, diabetes… a lucidez vagalumeando por conta do Alzheimer… Ver tudo isso foi muito duro. Tive a impressão de que afundavam um espinho no meu peito esquerdo, um pouco de cada vez. Em contrapartida, sua marca registrada foi o meu alento: leveza diante dos problemas da vida. Você, mesmo nos momentos mais difíceis da provação, nos dizia que tudo estava bem. Sabíamos que não era verdade, mas a palavra materna tem força de lei no coração filial. Além disso, embora presa numa cama hospitalar, ria e brincava e distribuía beijos. Eu, que costumava ter receio de um epílogo agonizante de existência, agora, inspirado no seu exemplo, nem ligo para isso.

Mas na sexta, como disse, desejei sua partida porque você, finalmente, já não aguentava mais o fardo. Numa dessas sinonímias a que a vida nos obriga, tomei a morte como liberdade. Castro Alves também fez assim num poema que li há muito tempo, A cruz da estrada. Um homem vê uma sepultura à beira do caminho. O narrador informa que ali é a última morada de alguém que foi escravo e adverte o passante: Caminheiro!/do escravo desgraçado o sono agora mesmo começou!/Não lhe toques no leito de noivado/Há pouco a liberdade o desposou. A sua libertação, mãe, veio no comecinho do dia seguinte ao meu pedido. Eram cinco da manhã de um sábado ensolarado quando se quebraram as correntes da enfermidade e o açoite da dor. A declaração de óbito foi uma carta de alforria.

Por onde você anda agora? Num de seus livros preferidos, a Bíblia, ali na Primeira Carta aos Tessalonicenses, existe um trecho que lembra o poema, pois diz que os mortos dormem, à espera da luz. Será que a senhora dorme? Se for assim, quero ser sepultado ao seu lado quando chegar a minha hora, e seremos nós dois juntos nessa gestação silenciosa no ventre da Mãe Terra, que a todos acolhe sem distinção.

Quer saber de uma coisa? Eu acho que você está por aí. No domingo mesmo vi um passarinho em uma das janelas da casa onde cresci e fui feliz com você. Ficamos eu e ele separados pelo vidro, olhando um para o outro por alguns segundos, antes do bater asas em direção ao céu. Aquilo me deixou um tantinho menos triste, e por isso acho que a imaginei na pequena ave, acalentando sua cria, protegendo seu antigo ninho. Também acho que, de agora em diante, vou vê-la cada vez mais nesses momentos de poesia que a vida tem. Hoje carrego uma dor imensa, é verdade, mas tenho dentro do peito o maior amor do mundo. Descanse em paz, minha linda rosa renascida.

Inscreva-se em nossa Newsletter